O apresentador Manuel Luís Goucha escreveu uma emocionada carta aberta ao seu pai, relembrando “outros tempos” em que havia menos tolerância para com a diferença.
“Em que estarias a pensar quando me pegaste ao colo? Sei que torceste um pé, tais os pulos de contentamento por eu ter nascido, naquele dia de Natal. Olha que bela prenda a Vida te deu!”, começa por contar, no que poderia ser uma história alegre, mas não foi.“Que planos terias para mim? Os pais projectam-se nos filhos, bem o sabes, naquele tempo queriam-nos formados em “económico-financeiras” ou, se o dinheiro não desse para os botar na faculdade, que fossem parar a um banco, que assim estaria garantida uma vida com algum desafogo.”
“Deve ter sido um choque para ti quando anos mais tarde, tinha nove não o esqueci, apareceste lá em casa para nos ver e te disseram que do que eu gostava era de teatro, de ópera, de música e bailado clássicos… A mãe esqueceu-se de te dizer que também já era apaixonado por livros, tal como ela; neles esquecia as horas e entrava em mundos diferentes e desafiadores. Andava a ler o “Malhadinhas” e às voltas com o dicionário e as palavras de Aquilino. Lembras-te de como reagiste?Recordo-o, como se o tivesses acabado de dizer: “então temos um maricas na família!”, continua.
“Apesar dos tempos serem de calar a diferença, já havia percebido que eram alguns homens que faziam pulsar o meu, ainda pouco decifrável, desejo.”
“O maricas fez-se homem, balizando-se em valores que considera justos e universais, pouco ligando ao juízo dos de fora, quando o único que me interessava, o da mãe, escutei-o aos dezoito, já eu era por minha conta e risco: “só quero que sejas feliz!”.
“Quando pego na nossa foto, a única que tenho de ti, vejo-me de sobrolho carregado como que a questionar-te: quem és? como és? Passaram sessenta e dois anos e não tenho respostas.”
“Há vínculos que não se podem adiar. Não foste pai, o meu pai, porque não quiseste, não soubeste ou não te deixaram ser! E eu, não fui filho, o teu filho. Estamos quites! Pena que tal facto não me sossegue, já que tudo ficou por dizer!”, termina.
Fonte: Manuel Luís Goucha, blog.